O artigo 6º da Lei 9610/98 (Lei de Direitos Autorais — LDA) aparenta certa controvérsia na interpretação da expressão “simplesmente subvencionada”. A dificuldade reside na obtenção de clareza quanto ao escopo dessa expressão, de modo a se saber quando os entes elencados no dispositivo estariam apenas subvencionando a criação.

Buscando apoio no próprio arcabouço legal nacional, encontra-se definição de subvenção na Lei no 4.320, de 17 de março de 1964, que “Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal”. Conforme o artigo 12, parágrafo 3º e incisos, temos que:

Art. 12. A despesa será classificada nas seguintes categorias econômicas:

(…) § 3º Consideram-se subvenções, para os efeitos desta lei, as transferências destinadas a cobrir despesas de custeio das entidades beneficiadas, distinguindo-se como:

I — subvenções sociais, as que se destinem a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade lucrativa;

II — subvenções econômicas, as que se destinem a empresas públicas ou privadas de caráter industrial, comercial, agrícola ou pastoril.

     Subvenção, pela definição indicada, seria modalidade de transferência de recursos financeiros públicos, para instituições privadas e públicas, de caráter assistencial, sem fins lucrativos, com o objetivo de cobrir despesas de seus custeios, ou ainda, transferências correntes destinadas a cobrir despesas operacionais das entidades para as quais são feitas as transferências.

    criandoTrazendo agora o significado de subvenção comumente encontrada nos dicionários de língua portuguesa, se pode defini-la como um auxílio pecuniário, em geral concedido pelo poder público. A palavra que surge dessa definição e que parece melhor apoiar a interpretação do termo “subvencionadas”, presente no artigo 6o. da LDA, é “auxílio”, ou seja, uma ajuda, um apoio, não se caracterizando como um interesse principal, uma transferência de valor associada diretamente à criação da obra.

     É possível que o artigo 6º da LDA não traga a clareza necessária para a aplicação de seu comando em casos concretos, pois o texto normativo não ajuda no sentido de esclarecer a diferença entre uma situação de mero auxílio de outra que se tratasse de um investimento vinculado à própria criação da obra. Esta falta de clareza resulta de uma aparente incompletude do artigo, que exclui do âmbito dos entes as normas meramente subvencionadas, mas deixa de abordar que obras pertenceriam ao domínio daquelas entidades. Nesse ponto, cabe uma breve análise do contexto histórico que trouxe esse conteúdo normativo para a LDA.

     Essa história começa há algum tempo, ainda com o Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916), a primeira norma a tratar de forma geral e sistemática as questões de direitos autorais.

     Em seu artigo 661, o Código Civil de 1916, adotando uma abordagem oposta a da atual lei de direitos autorais, trouxe o conjunto de obras que pertenceriam à União, aos Estados e aos municípios, desta forma:

Art. 661. Pertencem à União, aos Estados, ou aos Municípios:

I — Os manuscritos de seus arquivos, bibliotecas e repartições.

II — As obras encomendadas pelos respectivos governos, e publicadas à custa dos cofres públicos.

     Somente após informar que obras compunham o acervo desses entes, o legislador da época passou a tratar da exclusão prevista no artigo 6o da LDA, no parágrafo único ainda do artigo 661:

Parágrafo único. Não caem, porém, no domínio da União, do Estado, ou do Município, as obras simplesmente por eles subvencionadas.

     Percebe-se que o conteúdo do parágrafo único do artigo 661 do Código é bastante similar ao do artigo 6º da atual lei de direitos autorais. Entretanto, diferentemente do que ocorre na norma de 1998, no Código Civil de 1916 o dispositivo se apresenta em um contexto mais completo, já que caput e incisos do próprio artigo 661 tratam das obras que pertencem à União, Estados e municípios, fazendo o contraponto às obras que, por serem meramente subvencionadas, não passariam ao domínio destas entidades. Importante notar que, ao informar que as “obras encomendadas pelos respectivos governos, e publicadas à custa dos cofres públicos” pertencem à União, aos Estados, ou aos Municípios, o legislador facilitou que se alcançasse o significado da expressão “simplesmente subvencionadas”.

     Antes de continuarmos a análise histórica e passarmos a próxima norma a tratar do ponto em questão, cabe destacarmos, para posterior comentário, o conteúdo do artigo 662, ainda do Código Civil de 1916:

Art. 662. As obras publicadas pelo Governo Federal, Estadual ou Municipal, não sendo atos públicos e documentos oficiais, caem, quinze anos depois da publicação, no domínio comum.

     Avançando para a década de setenta, ainda no século XX, temos a sanção da Lei 5.988/73, norma que passou a regulamentar os direitos autorais a partir de sua vigência em 1º de janeiro de 1974. Diz o artigo 5º dessa lei:

Art. 5º Não caem no domínio da União, do Estado, do Distrito Federal ou dos Municípios, as obras simplesmente por eles subvencionadas.

Parágrafo único. Pertencem à União, aos Estados, ao Distrito Federal ou aos Municípios, os manuscritos de seus arquivos, bibliotecas ou repartições.

     Comparando com o Código Civil de 1916, há uma inversão na ordem dos comandos, aparecendo no caput as obras que, por serem somente subvencionadas, não comporiam o acervo dos entes, e no parágrafo único aparece a inclusão nesse acervo dos “manuscritos de seus arquivos, bibliotecas ou repartições”. Porém, desaparece a menção às obras encomendadas pelos entes, e que se incluiriam no domínio destes, conforme predizia o inciso II do artigo 661 do Código Civil de 1916. Entretanto, há uma importante menção a essas obras encomendadas na lei 5.988 de 1973 (e que equivale ao comando previsto no artigo 662 do CC16), em seu artigo 46, conforme disposto a seguir:

Art. 46. Protegem-se por 15 anos a contar, respectivamente, da publicação ou da reedição, as obras encomendadas pela União e pelos Estados, Municípios e Distrito Federal.

     Apesar de ter dado um passo atrás na definição do acervo pertencente aos entes públicos ao não explicitar que a eles pertencem as “obras encomendadas pelos respectivos governos, e publicadas à custa dos cofres públicos. ”, manteve um tratamento protetivo diferenciado para esses bens, reduzindo o prazo de proteção em respeito ao dinheiro público investido na criação dessas obras.

     Se a lei de 1973 deu alguns passos atrás ao deixar de explicitar que obras produzidas sob encomenda pela Administração a ela pertencem, a de 1998 deu vários: não apenas deixou de apontar que as obras encomendadas pela União, estados e municípios a estes pertencem — estamos falando nesse ponto de direitos autorais patrimoniais — como deixou de prever um prazo diferenciado, reduzido, de proteção a esses direitos, do modo que esses bens, criados com dinheiro público, pudessem retornar à sociedade — por meio de sua entrada em domínio público — em um prazo muito mais razoável do que o longo prazo protetivo previsto para as demais obras.

     Desse modo, obras da Administração, tanto quanto as obras particulares, a partir da Lei 9610/98, passam a ser protegidas pela regra geral de 70 anos (a depender do caso, contados a partir do ano subsequente ao da morte do autor, ou da publicação da obra), diferentemente dos 15 anos previstos pela lei de 1973 e do Código Civil de 1916(!), quando o prazo geral para as demais obras tinha a regra geral de 60 anos. Entendendo que a “relação de propriedade pública é sempre condicionada à finalidade coletiva que justificou a inclusão do bem no domínio estatal, sustentado no atingimento de uma função social” (Lacorte, 2014, p. 120)as normas anteriores apresentavam um tratamento mais adequado ao acervo das obras pertencentes à União, estados, Distrito Federal e municípios, pois com um prazo protetivo reduzido permitiam que essas obras, ao entrarem em domínio público, cumprissem melhor sua finalidade pública.

     A lei de direitos autorais atual teve foco em um regime privatista de proteção das obras, fundado na necessidade de autorização prévia para utilização da obra e prazos extensos de vigência dos direitos patrimoniais — importante mecanismo para promover a criação (ainda que se questione se há o equilíbrio necessário com prazos tão extensos). Porém, não há, como visto, na Lei de 1998, dispositivos que tratem de forma diferenciada os bens públicos literários e artísticos, de modo que a esses bens seja conferida uma tutela melhor ajustada à finalidade pública inerente a esses bens — a Administração Pública deve se valer de seus acervos intangíveis para oferecer o maior benefício social decorrente da utilização desses bens.

     No cenário tecnológico atual se reforça a necessidade de tratamento específico para os bens públicos literários e artísticos, já que as ferramentas tecnológicas têm servido para facilitar e ampliar a criação de obras intelectuais, inclusive pela própria Administração Pública. Além disso, a internet coloca essas obras mais próximas da sociedade, e certamente um tratamento específico, que observasse a natureza pública desses bens, ampliaria o benefício gerado com a criação dessas obras.

     O caminho, portanto, para a proteção — e disseminação — adequada das obras produzidas pela Administração requer a criação de dispositivos ou normas que observem as características específicas deste tipo de obra, especialmente quanto à finalidade pública. Tais textos legais devem ainda ter em conta os “princípios administrativos que regem a gestão dos bens públicos, a função social da propriedade aplicada aos bens autorais pertencentes à administração, e a função estatal de garantir e promover o acesso ao conhecimento e à cultura. Conceituar o bem público literário e artístico, delimitando a esfera de aplicação desse regime particularizado, estabelecer regras gerais de livre acesso e uso, delimitar os casos que excepcionam o uso livre e definir prazos mais curtos para a proteção dos direitos patrimoniais das obras que compõem o acervo da administração pública são elementos que podem dar início à construção de uma proposta que busque o tratamento que observe a finalidade — pública — desses bens” (Lacorte, 2014, p. 146).

Referências

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2011.

FRAGOSO, João Henrique da Rocha. Direito autoral: da antiguidade à internet. São Paulo: Quartier Latin, 2009.

LACORTE, Christiano Vítor de Campos. A proteção autoral de bens públicos literários e artísticos. Edições Câmara, 2014.

BRASIL. Lei nº 5.988, de 19 de fevereiro de 1998. Regula os direitos autorais e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 18 dez. 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5988.htm>.

SANCHES, Hércoles Tecino. Legislação Autoral. LTR Editora, 1999.


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